Juros e riqueza : começando uma discussão

A redução dos juros prejudica as famílias ricas? Somente se uma família concentra todo seu patrimônio em ativos financeiros, e principalmente se aplica a partir do estrangeiro, e deve haver lobby pró-juros nesse meio. Mas no Brasil talvez os mais afetados serão aposentados de classe média com pouca mobilidade para seus investimentos. Nos EEUU e Europa os juros têm caído concomitantemente com a elevação da concentração de renda, e isto não deve ser esquecido.

Uma vez soube de uma ideia na Suécia de obrigar a publicação de um “almanaque” onde todos saberiam a renda e patrimônio de todos. Não sei se essa iniciativa prosperou, provavelmente não, dados os problemas universais com segurança de pessoas físicas.

Os fundos de pensão e empresas de capital aberto publicam quanto têm em aplicações financeiras, já é algo. E a Receita poderia informar dados consolidados por faixa de renda para que o público soubesse o quanto a concentração de patrimônio é bem maior que a de renda no Brasil. A informação no Brasil é também muitíssimo concentrada, no governo, e poderia haver maior transparência e democracia nisso, sem prejudicar sigilos e indivíduos, claro. Felizmente podemos supor (será?) que os órgãos com acesso a dados e capacidade de análise subsidiem o governo com informações para uma tomada consciente de decisões.

Para o Brasil li recentemente que metade das aplicações em títulos públicos seria de fundos de pensão (e acho que é injustificável que aplicadores estrangeiros tenham sido isentos de IR.) E há dezenas de milhões de cadernetas de poupança, que, por não serem a melhor aplicação, devem ser de pessoas com menos recursos, mas que, de um modo ou de outro, refletem a remuneração da Selic, através do cálculo da TR. E seu montante total equivale a 20% da dívida pública líquida.

Então, há muita gente, mas não só ricos, se aproveitando das elevadas taxas de juros do Brasil. Por outro lado essas pessoas, de qualquer classe, pagam mais caro todo e qualquer produto que requeira algum capital de giro no seu fornecimento e devem estar recebendo menos serviços públicos do que poderiam. Os efeitos líquidos, inclusive os sociais, sempre são menores quando começamos a pensar nas compensações (trade-offs.)

Acho que temos que dessacralizar um pouco essa questão da riqueza financeira e dos juros. Dificilmente uma família muito rica investiria apenas em ativos financeiros. O mais comum deve ser que a maior parte da riqueza (enquanto estoque, como patrimônio) seja em empresas e imóveis, então a maior parte da renda (enquanto fluxo) é lucros e aluguéis. E, se os juros elevados favorecem ao poupador, por outro lado deprimem o valor dos outros ativos.

Se alguém, no momento X, tem R$ 1 MM em títulos do governo e R$ 1 MM em imóveis, o que ele pode esperar de renda? Cerca de R$ 3,5 mil mensais de juros (líquidos de inflação e IRRF de 15%) + uns R$ 5 mil de aluguel, faltando descontar a depreciação dos imóveis. (De um modo ou de outro, aluguéis e imóveis tendem a ser uma alternativa a juros e ativos financeiros.)

Se no médio prazo os juros caírem, para simplificar digamos dos 10.75 brutos para 6.2 (mínimo legal da poupança isenta de IR), o que poderia acontecer? (considerando TR de 0,5% e inflação de 0,4% a.m.)

O patrimônio financeiro dessa pessoa se manteria em R$ 1 MM, mas seu rendimento mensal líquido de inflação seria de apenas 0,1% a.m. ou R$ 1 mil (e quem notou que a caderneta de poupança faz uns 10 anos não rende mais inflação + 0,5% a.m.?) Como as atividades produtivas se mantêm, e até se revigoram com menor taxa de juros, os aluguéis não caem. E aí resulta um espaço enorme para procura de imóveis como alternativa de melhores rendimentos. Neste exemplo (dramático, sei) os imóveis poderiam se valorizar de 3 a 4 vezes que seu aluguel continuaria compensando, em renda líquida real, ter se saído da aplicação financeira.

Então, que não se subestime o potencial de valorização imobiliária. Mesmo que o custo de construção não se altere, haverá especulação com o estoque construído já existente, principalmente se houver menor crédito para novas construções. Mas terrenos devem subir bem de preço.

Raciocínio análogo pode ser aplicado à relação valor de mercado de uma empresa/lucros, isto é, como lucros também são contrapartida a juros, as empresas já instaladas se valorizam. E a sua manutenção fica mais barata, com a redução dos custos de empréstimos. Não é à toa que comerciantes e industriais, capitalistas ricos, clamam pela redução dos juros.

Se uma família tem seus bens distribuídos em vários tipos de ativos (“ovos em várias cestas”) não perderá muito com a queda dos juros, pois será favorecida pela valorização de seus outros ativos, o que pode até ocorrer sob a forma de uma bolha. Se as expectativas forem de redução prolongada dos juros, as ações sobem, principalmente se não há recessão para derrubar lucros. Veja-se que em quase todo o mundo as bolsas apresentam índices comparáveis aos de antes da crise, mesmo com os governos cortando juros e não conseguindo estimular a demanda.

A riqueza na forma de propriedades agrícolas já instaladas deve ser também favorecida : os juros para capital de giro caem, as terras sobem de preço, o câmbio que remunera sua produção, quase toda comercializável internacionalmente (tradeable), sobe.

Agora pensemos nos bancos, o vilão número 1 por excelência. Um banco não opera apenas com tesouraria, isto é, aplicando o dinheiro dos banqueiros. Pela Convenção de Basiléia pode se alavancar 12 vezes e o faz para obter mais lucros. Obtém depósitos até esse limite (e neste caso quem ganha os juros elevados é o depositante, não o banqueiro, que ganha a taxa de administração) e pode emprestar esses valores ao mercado, aí ganhando o spread (bem elevado, o que também sabemos.)

Em todo o caso, a maior fonte de lucro da atividade bancária não é emprestar aos governos, mas intermediar o crédito. E quase tudo o que é poupado, e não é recolhido compulsoriamente, tem tomador : a dívida total de agentes privados no Brasil é quase o montante da dívida pública líquida. Se os juros caem é até possível que os bancos lucrem mais, pois haverá maior número de atividades econômicas que podem se viabilizar com empréstimos mais baratos, mas não necessariamente os spreads caem só porque a taxa básica caiu. No Japão, por exemplo, os bancos são bem mais lucrativos por funcionário que no Brasil, mesmo com uma taxa básica de juros de 0,5% a.a.

Se a taxa real de juros cair, as contas públicas – e sua administração – serão favorecidas. E deve cair, pois está completamente desalinhada com o mercado internacional de capitais e não há justificativas pelo lado das necessidades de financiamento do governo. Há dúvidas se a taxa de poupança se manterá a mesma, e já é criticada por ser baixa, mas o governo não responde o que pensa fazer a respeito (e também não é questionado.) Possivelmente o Estado terá mais recursos para realizar investimentos (compensando a queda da propensão a poupar e a menor demanda por menor efeito riqueza, essa sensação de afluência por receber juros) e/ou transferências unilaterais (programas sociais.)

Porém o efeito final de tudo isso, em termos de concentração de renda, pode apenas ser intuído, mas não garantido. Quando os juros caem se espera menor formação de renda nas classes mais abastadas, afinal estas tendem a ter patrimônio financeiro – e recebem transferência direta através dos juros dos governos, outras classes não. Mas os mais ricos dispõem de várias alternativas para contornar essa dificuldade inicial, como não reduzir preços mesmo se os custos de produção caem, a valorização comentada dos ativos, os lucros na venda de produtos vendidos a crédito, a maior margem na venda de produtos exportáveis.

Vamos “desideologizar” um pouco a discussão sobre juros?

2 comentários sobre “Juros e riqueza : começando uma discussão

  1. Quanto a Suécia.

    Se não estou enganado, e acho que não, dos 4 países nórdicos, em 3 deles a declaração de imposto de renda é pública. Não sei se publicada.

    Já li que em uma determinada época do ano a fofoca é saber quanto o seu patrão ou a sua namorada ganhou no ano.

    Os nórdicos: Suécia, Dinamarca, Finlândia e Noruega. Não sei quais são os 3.

  2. Então, Ticão, já faz algum tempo que li sobre isso, referia-se à Suécia o artigo e as pessoas saberiam quanto seus colegas de trabalho ganhariam.
    Não sabia que havia iniciativa similar em 2 dos outros 3 países. E nunca soube se seria apenas renda ou incluiria patrimônio também.
    Eu acho a ideia interessante, dá transparência para a sociedade. Mas imagine algo similar no Brasil : seria roteiro para sequestro-relâmpago…

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